20/04/08

Alma

"Não sei para onde vou;
sou selvagem, sou uma alma que pecou culpas mortais contra Deus que me criou à Sua imagem.
Sou a triste, sem ventura, criada resplandecente e preciosa, angélica em formosura, e per natura, como raio reluzente luminosa.
E por minha triste sorte e diabólicas maldades violentas, estou mais morta que a morte sem deporte,
carregada de vaidades peçonhentas.
Sou a triste, sem mezinha, pecadora obstinada, perfilosa;
pela triste culpa minha, mui mesquinha, a todo o mal inclinada e deleitosa. (...)
Cada passo me perdi; em lugar de merecer, eu sou culpada.
Havei piedade de mi, que não me vi;
perdi meu inocente ser, e sou danada. E, por mais graveza, sento não poder me arrepender quanto queria; que meu triste pensamento, sendo isento, não me quer obedecer, como soía. Socorri, hóspeda senhora, que a mão de Satanás me tocou, e sou já de mim tão fora, que agora, não sei se avante, se atrás, nem como vou.
(...) Conheço-me por culpada, e digo diante de vós minha culpa.
Senhora, quero pousada, dai passada, pois que padeceu por nós quem nos desculpa. (...)"

(Auto da Alma, Gil Vicente)

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